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O processo de retirada da vacinação contra a febre aftosa no Brasil
O que é a febre aftosa?
A febre aftosa é a doença de maior impacto na pecuária mundial. É uma doença viral, altamente contagiosa, que acomete diversas espécies animais domésticas e selvagens, em especial os biungulados. Entre os animais domésticos, pode infectar bovinos, bubalinos, caprinos, ovinos e suínos.
Causa vesículas na língua, gengivas, narinas, espaço interdigital dos cascos, banda coronária e tetos. Esses sinais clínicos costumam levar a uma brusca redução na produção, já que o animal, com muita dor na boca, reduz drasticamente o consumo de matéria seca e, também com dor nos cascos, evita deslocar-se para buscar o alimento. Febre, apatia, salivação e claudicação também são sinais comuns. Em animais jovens, a doença pode causar óbito devido à miocardite aguda (conhecida como coração tigrado), mas os níveis de mortalidade em geral são baixos.
Os sinais clínicos da febre aftosa não podem ser distinguidos dos de outras doenças vesiculares, como a estomatite vesicular, ou o senecavírus, no caso dos suínos. O que diferencia essas doenças é exatamente a velocidade com que se dissemina nos rebanhos.
O poder de difusão do vírus da febre aftosa é muito maior do que o de outras doenças confundíveis. Essa característica, associada ao fato de que produtos de origem animal, especialmente carne com osso, podem carrear o vírus, faz com que a maioria dos mercados importadores imponham sérias restrições ao comércio de produtos a partir de países que têm a doença. Ao fim, verificar se um país é capaz de controlar a febre aftosa é sempre um bom termômetro para avaliar a qualidade dos seus serviços veterinários.
Figuras 1 e 2. Animais com sinais clínicos de febre aftosa.
Fonte: Ministério da Agricultura e Pecuária
O histórico de combate à febre aftosa no Brasil
A febre aftosa foi registrada pela primeira vez no Brasil no município de Uberaba, em 1895. De lá para cá, causou diversos prejuízos ao produtor, com as perdas aumentando conforme o Brasil foi se tornando um importante exportador de proteína animal, especialmente a partir dos anos 90.
Foi aí que se viu a necessidade de se criar uma estratégia nacional de combate a doença, nascendo então, em 1992, o PNEFA – Programa Nacional de Erradicação de Febre Aftosa. O PNEFA não nasceu no vácuo. Ele surgiu da esteira dos programas de vacinação massal que vinham sendo conduzidos desde a década de 1960, e que, por sua vez, eram extensões de esforços prévios do controle da doença – o primeiro código sanitário que previa ações de combate à febre aftosa data de 1919.
O surgimento do PNEFA, porém, trouxe padronização ao processo, deixando para trás uma fase de controle da doença, descentralizada e com serviços frágeis, e ingressando em uma fase de erradicação, com comando central e diretrizes uniformes, que levaram ao fortalecimento dos serviços estaduais.
Em 2017, com ausência da doença em território nacional por 11 anos, o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) publicou o Plano Estratégico do PNEFA, com a previsão da suspensão gradativa da vacinação em todo o país até 2026. Suspender a vacina, porém, já era uma meta distante no horizonte desde o surgimento do PNEFA em 1992. Ali já se sabia que inevitavelmente o país chegaria a uma fase em que seguir vacinando perderia o sentido.
Figura 3. Evolução do status sanitário do Brasil em relação à febre aftosa entre 1998 e 2023
Fonte: Ministério da Agricultura e Pecuária
Por que parar de vacinar para a febre aftosa?
Os objetivos e estratégias utilizados na vacinação em programas de saúde animal não são os mesmos daqueles envolvidos em programas de saúde humana. Enquanto na saúde humana o foco é a proteção do indivíduo, de maneira que a prevenção de uma única morte já é sinal de sucesso, na saúde animal o foco está no rebanho, e não no indivíduo, sendo aceitável que algum indivíduo perca a vida em um cenário em que grande parte da população está protegida (embora, no caso específico da febre aftosa, a doença cause baixa mortalidade).
Assim, é sempre importante ressaltar que a meta da vacinação é manter altos índices de proteção imunitária no rebanho, e não em um único animal.
O uso de vacinas em programas de saúde animal tem como objetivo diminuir a prevalência da doença alvo até o momento em que os baixos índices de ocorrência permitam passar à fase de erradicação. Nessa etapa, é desejável que se pare de vacinar, pois a vacina pode inclusive dificultar a erradicação, já que é capaz de camuflar uma infecção em curso.
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A pergunta que fica então é: em que momento do PNEFA chegamos a esse ponto? Ora, os últimos focos registrados da doença em território nacional remontam a 2006. Desde então, a vigilância para a febre aftosa apenas cresceu, apoiada em cinco componentes: vigilância ativa, vigilância passiva, vigilância em abatedouros, vigilância em eventos de aglomeração animal e estudos soroepidemiológicos.
Todos esses dados somados nos indicam que não apenas conseguimos reduzir a prevalência da doença, mas que efetivamente a erradicamos. Não se trata mais, portanto, de que o momento de retirar a vacina chegou. Se trata de que esse momento já passou – inclusive há algum tempo.
Há riscos na retirada da vacina da febre aftosa?
Riscos sempre existem. Há uma citação comum entre epidemiologistas que diz que “risco zero não existe”. A pergunta é: qual é esse risco? Podemos lidar com ele?
Vale lembrar que, embora a vacinação aumente a resistência dos animais à infecção, não necessariamente a evita. A diferença entre o animal vacinado se infectar e não se infectar dependerá do sorotipo envolvido na infecção (e sua correlação com o sorotipo presente na vacina), a carga viral e o estado imunitário do animal (que, mesmo vacinado, pode não apresentar boa resposta imunológica, por más práticas de vacinação, problemas nutricionais, doenças imunodepressoras, etc). O que a vacina faz, e com grande eficácia, é prevenir o aparecimento dos sinais clínicos. Ou seja, um rebanho vacinado não está imune à reintrodução da doença.
Mas animais vacinados, mesmo infectados, excretarão uma carga viral menor e estarão mais protegidos contra a infecção e, especialmente, contra a manifestação clínica. Isso reduz drasticamente a disseminação da doença no rebanho. Assim, a retirada da vacina não impede a reintrodução da doença, mas pode influenciar em sua dispersão, caso o vírus ingresse. Para isso, porém, temos a possibilidade do uso da vacina de emergência, prevista no Plano de Contingência da febre aftosa, para contenção de possíveis focos.
Nesse caso, seriam vacinados apenas os rebanhos ao redor do foco, com o objetivo de interromper a transmissão e, assim, a disseminação da doença. A conclusão é que seguir vacinando não impede a reintrodução do vírus.
Ademais, é preciso lembrar que não se trata de uma simples retirada da vacina. O Ministério da Agricultura apenas autoriza a interrupção da vacinação para estados que tenham alcançado critérios mínimos de qualidade em seus serviços veterinários oficiais. Esses critérios incluem a existência de fundos ativos de indenização, patamares mínimos de geolocalização de propriedades, níveis de avanços pré-determinados em ações previstas no Plano Estratégico do PNEFA e avaliações semestrais dos serviços veterinários estaduais, em uma metodologia conhecida como Quali-SV, desenvolvida com base em padrões internacionais estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde Animal.
Assim, obter autorização federal para suspender a vacinação e entrar na fase de transição para zona livre sem vacinação é um processo complexo, que tem custado anos de trabalho e aperfeiçoamento dos serviços aos estados. Na prática, não se trata de uma retirada da vacina, mas de sua substituição por outras ferramentas: mitigação de risco, vigilância focada em detecção precoce e preparação para atuação em emergências.
O panorama do país livre sem vacinação
A conquista da condição de livre de febre aftosa sem vacinação sempre traz frutos. A questão é que, muitas vezes, esses frutos demoram alguns anos a vir, e via de regra, o produtor e a indústria querem ganhos imediatos. Santa Catarina, o primeiro estado brasileiro a conquistar o status de estado livre de febre aftosa sem vacinação, obteve o reconhecimento internacional em 2007.
Entretanto, apenas fechou os primeiros acordos importantes para exportação de produtos de origem animal sete anos mais tarde, em 2014. A aceitação dos países importadores é um processo lento, que requer diálogo, vontade política, articulação institucional, condução de missões in loco, realizações de análises de risco e uma série de outros fatores técnicos, econômicos e políticos.
Mas a recompensa, caso a lição de casa seja bem feita e a doença mantida longe, virá mais cedo ou mais tarde. Não à toa grandes exportadores – e concorrentes do Brasil – como Estados Unidos e Austrália tratam a manutenção do status de livre de febre aftosa sem vacinação como questão de segurança nacional.
E nós, como estamos tratando a questão? Vamos nos contentar com o que já conquistamos ou avançar na direção que outros, pioneiros, já trilharam? A escolha pela suspensão da vacinação, da maneira que está sendo conduzida pelo Brasil, é uma escolha natural. Óbvia, até. Por questões técnicas e econômicas. Mas o que é óbvio também precisa ser dito e alardeado. Não tenhamos medo de evoluir.
MIlkPoin com as fontes:
BRASIL. Ministério da Agricultura e Pecuária. Plano de contingência para febre aftosa - níveis tático e operacional. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/sanidade-animal-e-vegetal/saude-animal/programas-de-saude-animal/febre-aftosa/planocontingenciaparafebreaftosa.pdf
BRASIL. Ministério da Agricultura e Pecuária. Plano de Vigilância para a Febre Aftosa – 1ª Edição. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/sanidade-animal-e-vegetal/saude-animal/programas-de-saude-animal/febre-aftosa/Plano_12951936_Plano_de_Vigilancia_para_Febre_Aftosa_1a_Edicao_2020.pdf
BRASIL. Ministério da Agricultura e Pecuária. Plano Estratégico 2017-2026 do Programa Nacional de Vigilância para a Febre Aftosa – 1ª Edição. Brasília, 2017. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/sanidade-animal-e-vegetal/saude-animal/programas-de-saude-animal/febre-aftosa/FEBREAFTOSAV6.pdf